NO 121.ºANIVERSÁRIO DA API – 7/MAIO/2024
No início da Eucaristia comemorativa, celebrada na igreja de Santa Clara, fez-se memória do seu fundador com o seguinte texto do Dr. João Alves Dias.
“Quis a direção dar graças a Deus pelos 121 anos de existência desta associação que, no seu, integra o nome fundador: ‘Associação de Proteção à Infância Bispo D. António Barroso’ (API)
E quem foi D. António Barroso? Poder-se-á perguntar…
Para iniciar a resposta, selecionei duas afirmações que ajudam a conhecer uma personalidade tão rica e multifacetada que sempre nos surpreende.
O Homem das causas difíceis, o minhoto de rija têmpera, nas horas mais duras, costumava dizer: “Há duas coisas de que não morrerei: de parto ou de medo”;
O Bispo pobre, no seu testamento, escreveu: “Nasci pobre, rico não vivi e pobre quero morrer.”
Breve nota biográfica
-Nasceu em 1854 em Remelhe, Barcelos, num pardieiro subalugado aos caseiros da Casa de Santiago onde seus pais viviam. A mãe era tecedeira e o pai, carpinteiro.
Numa receção na Câmara de Barcelos, ao entrar, viu Dona Adelaide Limpo. Logo se aproximou dela e disse: “Então Vª Excia que tantas vezes me matou a fome, ajoelhada diante de mim?! Deixe-me dar-lhe um abraço”.
Ordenou-se presbítero, em 1879, no Colégio das Missões Ultramarinas em Cernache de Bonjardim.
-No ano seguinte seguiu para Angola/Congo
-Em 1891, com 37 anos, foi ordenado bispo e nomeado prelado de Moçambique.
-Em 1898, foi nomeado bispo de Meliapor na Índia
-Em 1899, veio para bispo do Porto. Tinha 45 anos
-Em 31 de agosto de 1918, morreu, com 64 anos, no Paço de Sacais junto ao Liceu Alexandre Herculano, uma casa alugada porque o Estado tinha-se apropriado do Paço Episcopal que só restituiu à Diocese na década de sessenta.
Quando morreu, ficou na memória do Povo como o “Bispo dos Pobres” e o ”Bispo Santo”.
O ‘Bispo dos pobres’
– Porque praticou a caridade:
. A mãe ofereceu-lhe o seu cordão de ouro. Mais tarde, ele confessou que o cordão já não existia porque o foi partindo aos bocadinhos para dar, quando nada mais tinha, aos pobres que lhe batiam à porta.
. O escritor Raul Brandão seu contemporâneo escreveu: “O Bispo é uma grande figura de bondade. Dá tudo o que tem”.
. D. António Barbosa Leão, seu sucessor no Porto, disse que “em sua casa faltaria talvez na mesa até o necessário; o seu vestuário muitas vezes denunciava pobreza, mas para os pobres havia sempre: esmola e palavras amigas”.
– Porque dinamizou várias instituições de assistência, como a Oficinas de S. José, Asilo de Vilar, Recolhimento das Meninas Desamparadas, Recolhimento do Ferro, Irmãzinhas dos Pobres. Fez renascer o Círculo Católico Operário. E criou a Associação de Proteção à Infância.
– Porque defendeu os mais pobres:
Em 1918, pouco antes da sua morte, publicou uma carta pastoral em que defendeu o trabalho como “nobre meio de se ganhar o sustento de cada dia”. Lembrou aos patrões que “brada ao céu o pecado de se não pagar a quem trabalha o jornal merecido e justo”. Reconheceu a importância dos sindicatos. Clamou contra a “exploração monstruosa, sem entranhas nem pudor”.
O ‘Bispo Santo’
Pela bondade e também pelo sofrimento.
Sofreu nas colónias onde apanhou uma doença que o perseguiu toda a vida.
Mas foi no Porto, o seu longo calvário.
Começou já no tempo da Monarquia com o ‘Caso Calmon’ (1901) e acentuou-se com a proclamação da República em 1910 e a sanha anticlerical dos seus governantes. Foi sujeito a três julgamentos e sofreu dois exílios.
Em 1911, Afonso Costa chamou-o a Lisboa e condenou-o ao desterro com a proibição de voltar ao território diocesano. Foi conduzido sob prisão para o Colégio das Missões onde tinha estudado. Quando ia para o Ministério, o carro que o levava foi apedrejado pelos carbonários.
Em 10 de Junho, passou a viver na sua terra. A pequena capela medieval de Santiago, em Remelhe, tornou-se na ‘catedral do exílio’ do Porto onde ordenou 64 presbíteros, um dos quais foi meu pároco, batizou-me e acompanhou-me até à juventude.
Em 1914, regressou à Diocese, com grande júbilo e um ‘Te Deum’, na Sé.
A revista ‘Lusitânnia’ escreveu: Ei-lo que volta! Traz do exílio mais brancos os cabelos. Há, todavia, na sua face o mesmo sorriso afável e bom que atrai os corações e na luz dos seus olhos vibra ainda a centelha fina do brilhantíssimo espírito que o tom firme da voz revela.”
Em 7 de Agosto de 1917. voltou a ser desterrado, agora para uma diocese que não confinasse com a do Porto. Foi viver para Coimbra. Regressou em 20 de dezembro desse ano, com o governo de Sidónio Pais.
Na minha infância, minha mãe, que o conheceu ainda menina, falava-me do “Senhor Bispo de barbas brancas que era um santo. Sofreu como Nosso Senhor”.
‘Vox populi, vox Dei’. Em 2017, a Igreja reconheceu as suas virtudes heroicas e proclamou-o Venerável.
- D. António Barroso foi um HOMEM DE AÇÃO
– O seu trabalho em Angola, Moçambique e naÍndia foi tal que, Afonso Costa, no mesmo decreto que o condenou ao exílio em 1911, reconhecia: ”D. António Barroso prestou outrora relevantes serviços à Pátria e é dotado de incontestáveis virtudes pessoais que o impões como homem ao respeito dos seus conterrâneos”. E atribuiu-lhe uma pensão vitalícia anual, no valor de 1200$00 que D. António, apesar das suas parcas economias, sempre recusou receber.
– Na metrópole, refiro três instituições que, para além da Associação de Proteção à Infância, ainda perduram nos nossos dias.
. Em 1898, liderou o grupo que fundou o Colégio Português em Roma. Em carta (1899) dirigida aos Viscondes da Pesqueira, dizia: “Porque nada tenho mais a peito que esta obra providencial, nem em qualquer outra coisa vejo maiores esperanças de regeneração e de salvação para esta nação (…) Deus tinha-me reservado a honra de apresentar humildemente ao glorioso Pontífice Leão XIII o projecto dos iniciadores…”
O Papa João Paulo II quando o visitou, afirmou: “A história da Igreja em Portugal e noutros territórios de expressão portuguesa, neste século, não poderá ser escrita sem referir a participação que nela tiveram os antigos alunos do Pontifício Colégio Português”. (1985). “Por ele passaram 867 alunos, entre eles, contam-se 3 cardeais e 64 bispos”. (2003)
. Em 1905, benzeu a pedra fundamental do Monumento à Imaculada perante cerca de 100.000 pessoas. Foi o início do santuário do Monte da Virgem.
Finda a bênção foi colocada por debaixo dessa pedra, um cofre com um pergaminho que dizia: “No dia 25 de Junho do ano de 1905 (…) Eu, D. António José de Sousa Barroso, Bispo da Diocese do Porto, coloquei esta pedra no Monumento e santuário da Bem-Aventurada e Imaculada Virgem Maria, erigido neste Monte Grande, hoje chamado Monte da Virgem. (…) Em testemunho deste facto, assinei pela minha mão o presente documento, no ano e dia acima referidos”.
. Em 1915, impulsionou a fundação da Associação dos Médicos Católicos Portugueses. No discurso de inauguração do I Congresso dos Médicos Católicos, afirmou:
“É com o mais vivo júbilo que saúdo os ilustres e dedicados médicos hoje aqui reunidos em Congresso, em nome dos salutares princípios católicos. O médico é um admirável benfeitor da humanidade, e, no exercício da sua nobre e difícil profissão, encontra-se não raro ao lado do padre, chamado pela voz imperiosa do dever à cabeceira do enfermo.”
E foi também um HOMEM DO PENSAMENTO
. Defendeu a educação das raparigas africanas, quando, na Metrópole, 90% das mulheres eram analfabetas. Escreveu:
“Ao lado da escola para rapazes, deve haver a escola para raparigas: não sendo assim,nós estamos a civilizar meia humanidade, mas escapa-se-nos a outra meia, quiçá a mais importante, pelo predomínio que tem na formação dos costumes.”
E também a criação de “Escolas práticas de ofícios, onde o indígena, junto com a língua portuguesa, a leitura e as quatro operações, pudesse aprender um ofício pelo qual se emancipasse da miséria”
Sobre o trabalho do missionário, disse:” O missionário deve levar em uma das mãos a Cruz (…) e na outra a enxada, símbolo do trabalho abençoado por Deus. (…) Deve tão depressa pôr a estola (…) como empunhar a picareta para arrotear uma courela de terreno.” (Sociedade de Geografia de Lisboa – 7/3/1889),
Denunciou da Escravatura:
”Ao lado do missionário, porém, (…) estava o comprador de homens, o que estrangulava os laços que prendiam o filho ao pai, e a mãe à filha; o despovoador da região, o destruidor de todos os afetos, o homem sem coração, que ganhava punhados de ouro vendendo aquele que a religião lhe dizia ser seu irmão” (idem)
– E contrariou os preconceitos racistas
– “Sei que há muito quem negue à raça preta a faculdade de se levantar da sua degradação atual, declarando-a incivilizável; na minha opinião, nada mais falso do que este juízo; o preto é hábil como os brancos”.
-“Se me derem vinte crianças pretas e vinte crianças brancas para eu educar, segregadas umas e outras de todo o contacto externo à missão, eu prometo fazer dos pretos homens tão aptos, tão laboriosos e enfim tão honrados como os brancos.
-“É muito fácil afirmar que o preto é rebelde à instrução e ao trabalho, é um estribilho banal que à força de repetido parece um axioma, e é falsidade. Eu pela minha parte, continuarei a acreditar que o preto é muito suscetível de aprender e de trabalhar, conquanto que lhe facultem meios eficazes”.
-Escreveu uma carta a Afonso Costa, sete dias após a revolução republicana: “Permita V. E. que, com vista nos altos interesses que me estão confiados, e que tanto importam ao Estado português, eu venha pedir a V. E. que as medidas, que se diz o Governo Provisório da República Portuguesa tenciona tomar, com respeito a assuntos eclesiásticos, não sejam decretadas antes da reunião da Assembleia Constituinte mas sim sejam a ela presentes. Como cidadão português, ouso esperar que o Governo do meu país, nas medidas que sobre tais assuntos houver de tomar ou propor, se inspirará nos elevados princípios e sentimentos de liberdade, de justiça e de equidade, que podem concorrer para a ordem pública, para a tranquilidade e bem de todos, o que certamente constitui a aspiração do Governo.”(12/10/910)
Monumento do “O Apóstolo dos Três Continentes”
Deixo como sugestão uma visita ao monumento a D. António Barroso – “O Apóstolo dos Três Continentes” – da autoria do escultor José Rodrigues, no Largo 1.º de Dezembro. Foi inaugurado em 1999, primeiro centenário da sua nomeação como Bispo do Porto.
Ergue-se numa estrutura em bronze que sugere um ‘padrão dos descobrimentos’ a marcar sua passagem por Angola, Moçambique e Índia. Na frente, aparece a figura de D. António numa expressão serena e austera com a mão direita a apontar em direção à Sé. No lado oposto, vê-se um pelicano a alimentar os filhos com a sua própria carne com a legenda ‘Non sibi sed omnibus’ (Não para si mas para todos). No lado esquerdo, três cabeças, num tufo de vegetação exótica, evocam os três continentes onde evangelizou: África, Ásia e Europa. No lado direito, uma pomba…
Homenagem – Manter viva e “adaptada às novas exigências da sociedade” a Associação que D. António Barroso tanto amou, honra e perpetua a sua veneranda memória.
A nossa gratidão e homenagem a quantos nela trabalham ou apoiam.
Publicação na Voz Portucalense a 26 de junho de 2024
VozPortucalense_26-6-2024_-A-ASS-DE-PRO-A-INF-E-O-SEU-FUN